sexta-feira, 15 de abril de 2011

Desculpe, não lembro de você


Todos nós somos inesquecíveis, claro. Mas algumas pessoas, estranhamente, se esquecem de nós. E nós também nos esquecemos de pessoas. Se a vida fosse simples, não haveria problema. “Desculpe, eu não me lembro de você”. Diante dessa frase, perfeitamente compreensível, a pessoa explicaria, rapidamente, onde e quando vocês se conheceram – e que tipo circunstância compartilharam. Foi trabalho, lazer ou prazer?

Mas a vida está longe de ser simples. Diante de um sorriso de intimidade num rosto estranho, a maior parte de nós mergulha em pânico social. Em vez de admitir ignorância, somos levados a agir como tontos. Sorrimos de forma mecânica, entabulamos uma conversa sem sentido, esperamos que o cérebro – o mesmo que acaba de nos deixar na mão – encontre uma saída para a enrascada. A quem pertence esse rosto, meu deus? De quem é essa voz que se dirige a mim com tanta naturalidade? Todos já passamos por esse pesadelo.

Faz muito tempo eu vi um filme francês no qual havia uma cena desse tipo, deliciosa.

O sujeito entra no bar, senta-se em frente da garçonete e faz cara de criança feliz. A moça olha, estranha a atitude dele e, afinal, pergunta: você e eu nos conhecemos? O rapaz balança a cabeça afirmativamente. Ela faz cara de brava, afasta-se, mas volta, minutos depois, curiosa. “Nós transamos?”, pergunta. O rapaz assente, com entusiasmo. Na cena seguinte, estão os dois na cama, com cara de que deu tudo errado. Ela diz uma única frase: “Agora me lembrei de você”.

Afinal, o que nos torna esquecíveis ou inesquecíveis?

Minha impressão é que isso nada tem a ver com qualidades inerentes, como beleza, charme e habilidades. É uma questão de circunstância. Às vezes estamos tão agitados ou tão distraídos que a mais bela mulher do mundo pode passar sem deixar marcas. Diante do cenário em movimento, torna-se um rosto ou um corpo sem identidade. Outro. Há fases da vida dos homens e das mulheres em que isso tende a acontecer. Pela quantidade, pela repetição, pela ausência de relevo emocional. A tristeza provoca esse tipo de sensação. Ou a euforia. Tudo fica mais ou menos igual. As coisas e pessoas vão se sucedendo e todas elas ficam parecidas. É provável que alguém que passe pela vida do sujeito – ou da moça – num período desses, seja posto de lado na memória, logo em seguida. Sem desonra. A gente nunca sabe o que se passa no interior do outro.

A gente nunca sabe o que se passa no interior do outro. Agora que inventaram o Facebook, essas coisas estão acontecendo em escala muito maior, planetária. Na vida de todo mundo. Eu não sou o cara mais popular da cidade, nunca fui, e, mesmo assim, vira e mexe aparece alguém no meu perfil, se reapresentado: então, lembra de mim? Às vezes eu não me lembro de nada e deixo por isso mesmo. A memória deve ter suas razões. Em outras ocasiões eu quase lembro, quase sei quem é a pessoa, e isso me deixa curioso. O que terá havido que eu borrei na memória?

Como eu disse no início, todos nós somos intrinsecamente inesquecíveis. Únicos mesmo. E eu acredito nisso. Se alguém pudesse, como nos filmes, entrar na nossa mente, por um segundo que fosse, perceberia a corrente de sentimentos, memórias e sensações totalmente originais que forma cada um de nós. Mas não vivemos assim, não é? Passamos rapidamente pela vida dos outros, que passam pela nossa, sem verdadeiramente nos tocar. Somos muitos, não deixamos marcas e tampouco nos deixamos marcar. Nessas circunstâncias, a memória fraqueja. Cria embaraços, mas abre, também, novas oportunidades. “Desculpe, eu não me lembro de você”, não é necessariamente um insulto. Pode ser apenas um recomeço.

E segue.

(Texto adapatado por JZ - Original de Ivan Martins)

Há lugares que apenas um livro pode te levar...

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Se te incomoda...

Gastamos muito tempo com nossos preconceitos. E é quase impossível livrar-se deles. Cada um carrega os seus como uma espécie de herança particular, que tem peso quase igual ao da genética. Quem mais os nega é quem geralmente mais os tem. A maioria não os assume, o que vai garantindo um convívio social sem maiores atritos, afinal. O peso do meio em que vivemos é esmagador. Pela força da repetição, acabamos esses sentiimentos rudes como se fossem a base para uma compreensão sadia do existir.

Alguns conseguem disfarçar essa deformação, que exclui tantas pessoas das relações. Quase sempre são detalhes, bobagens minúsculas que não sustentam um segundo olhar. Se parássemos para nos perguntar "mas por que será mesmo que eu penso assim?", é provável que nos surpreendêssemos com essa estupidez orgulhosa. Nesses raros instantes nasceria a pergunta: por que o diferente me incomoda tanto? Uma resposta corajosa pressupõe um exame de consciência profundo e a inevitável constatação: é porque está em mim o que nego e me causa desconforto. Caso contrário, tudo passaria batido, incorporado dentro da ordem das possibilidades, tornando os encontros mais saudáveis.

Por isso, tenha cuidado se você costuma ficar vociferando contra ateus, negros, gordos, homossexuais, judeus, altos, baixos, loiros... Só para ficar no óbvio. Todo mundo tem seus esqueletos no armário. Muitas vezes eles só vêm a luz de forma camuflada. Vamos nos especializando em pequenas trapaças para que não paire sobre nós a pecha dos obtusos. E as postura do "politicamente correto" só reforça essa necessidade de uniformidade e padronização, tão caras a nossa época. Todos pensando igual para que ninguém se sinta ofendido. O uso de eufemismos também não ajuda muito. Colocar certas palavras no diminutivo, menos ainda. Somos propensos a transformar banalidades em normas de vida. Tendemos a nos aproximar somente daqueles que falam a nossa linguagem. Esquecemos, assim, que tudo cabe dentro do humano. Que tudo é uma questão de escolha ou, em alguns casos, de determinismo biológico.

Como me cansam essas pessoas que vivem no púlpito, separando o joio do trigo. E o relativismo, onde é que fica nessa história toda? Porque são nossas vivências que determinam grande parte do que somos. Mas lustramos meia dúzia de expressões e com elas queremos traduzir o modo de ser e de viver de todos. A partir de que princípios universais pensamos saber escolher com precisão cirúrgica o que é bom e o que não é? Cimentamos algumas ideias como se fossem o único arsenal disponível de conhecimento. Contradizer-se é ser grande, porque pressupõe a coragem de espiar o que acontece do outro lado. Um lado que pode nos parecer estranho, mas que muitas vezes se esconde dentro de nós.

A ignorância só pode ser isso. Sentir-se acuado porque algo diverge do nosso pensamento. Achar um escândalo que as coisas mudem - indiferentes ao que sentimos, pobres de nós. Quero acreditar que o crescimento flerta com o confronto, com a ousadia de aceitar o que acontece na casa do vizinho. O que não sou é o que eu poderia ser, porque muitas vezes optamos por matar o desejo em vez de assumir o que condenamos.

As uvas parecem sempre verdes para quem só encontra a perfeição dentro de si. Olhe para o outro lado, para frente, para além. Há muitos mundos, muitas vidas além da sua. Além da minha. Além desta, daquela outra...



(Texto original de Gilmar Marcílio - Modificado por JZ)